Samuel Barreto
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Por Samuel Barrêto

Mais uma vez o fantasma de uma nova crise hídrica e energética bate às nossas portas. Desta vez, numa área ainda maior do que a registrada entre 2014 e 2015, que esteve concentrada especialmente nas regiões Sudeste e Nordeste. Agora, a atenção se volta para o Centro-Oeste, além, novamente, dos impactos no Sudeste.

Quem não se lembra do símbolo da seca de 2014-15? Com o colapso iminente dos reservatórios do Sistema Cantareira, que abastecem a Região Metropolitana de São Paulo, foi necessário utilizar, pela primeira vez na história, o “volume morto”. O nível de água ficou tão baixo que a captação só foi possível a partir do bombeamento dos reservatórios. Vale recordar também o apagão energético de 2001, cuja alternativa à época foi a adoção de um racionamento que afetou diretamente as pessoas e a economia do país.

No início de maio, o ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque, declarou que o Brasil passa pela maior crise hídrica desde 1931. De fato, enfrentamos o mais baixo nível de água para esta época do ano nos reservatórios que integram o Sistema Integrado Nacional (SIN) de energia das regiões Centro-Oeste e Sudeste. Reservatórios esses que representam cerca de 70% da produção hidrelétrica do país e que se encontram com menos de 29% da sua capacidade. É, de fato, um cenário preocupante, considerando que estamos apenas no início da estação da seca.

No fim de maio, um alerta de emergência hídrica foi emitido pelo Sistema Nacional de Meteorologia (SNM) para o período entre junho e setembro na bacia hidrográfica do Paraná, que abrange os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná. Em seguida, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) acatou o pedido para declarar emergência hídrica nessa bacia. A medida permite alterar — se for necessário e de forma temporária — as condições definidas em outorgas de direito de uso para a licença dos recursos hídricos. Desta forma, permite assegurar o equilíbrio e a promoção dos usos múltiplos da água entre todos os usuários, de forma a minimizar os conflitos e os riscos hídricos. Ação que é atribuição da ANA.

No entanto, o setor elétrico reagiu à medida e defendeu a flexibilização das restrições impostas pela ANA para a gestão dos reservatórios. O Executivo acaba de publicar a Medida Provisória (MP) nº 1.055, de 21 de junho de 2021, que institui a Câmara de Regras Excepcionais (CREG). O objetivo é estabelecer medidas emergenciais para a otimização do uso dos recursos hidroenergéticos e para o enfrentamento da escassez hídrica. Na prática, o estabelecimento da CREG enfraquece as atribuições da ANA, passando-as ao MME. A MP aprovada descaracteriza a Lei dos Recursos Hídricos e abre um precedente que, ainda que para uma finalidade estratégica, gera insegurança jurídica e pode ampliar o risco hídrico para os demais usuários, incluindo o abastecimento humano. E explico por quê.

Mesmo com um sistema elétrico mais seguro que em 2001, pela complementariedade com as usinas termoelétricas (mais poluentes e mais caras) e fontes renováveis como a energia eólica, será difícil não considerar o racionamento de energia, especialmente se a seca perdurar por muito tempo. Ainda que não se fale abertamente sobre esse assunto, o risco existe e há previsão de aumento do consumo no segundo semestre pelo setor industrial e pela população, com chuveiro elétrico, que acarreta maior consumo de energia com o “modo inverno”, enquanto no verão a pressão ocorre com o uso do ar-condicionado e com o maior consumo de água.

A solução momentânea para o enfrentamento do baixo estoque de água dos reservatórios foi acionar as termelétricas, de forma a compensar a redução na geração pelas hidroelétricas. O resultado dessa medida o consumidor já percebeu na prática com o aumento da tarifa de luz pela bandeira vermelha, nível 2. E que deve continuar a aumentar.

A ANA afirmou que não deve ocorrer "num primeiro momento" falta de água para o abastecimento doméstico e a irrigação porque, mesmo com os baixos níveis dos reservatórios, esse estoque será suficiente para atender a essa demanda. Porém, na prática a escassez abre uma disputa e conflito pelo uso da água entre os diferentes usuários, como aqueles que usam o recurso para o abastecimento humano, os que utilizam para a agricultura, entre outros. E a MP que acaba de ser publicada pelo Executivo pode acentuar ainda mais essa disputa.

Muitas cidades do interior do estado de São Paulo já enfrentam o racionamento e esse cenário pode ser ampliado para outras regiões. O setor do turismo acumula perdas significativas não apenas em razão da terrível pandemia do coronavírus, mas também pela seca, como a do Lago de Furnas, em Minas Gerais, em que as atividades relacionadas à navegação e ao lazer aquático vêm sendo impactadas com consequências econômicas e sociais para essa cadeia produtiva.

Porém, o nível dos reservatórios, a escassez e os conflitos pelo uso da água representam apenas a ponta do iceberg resultante de uma combinação e sinergia entre vários fatores locais, regionais e globais. Apenas uma resposta sistêmica e não pontual poderá enfrentar tal insegurança hídrica. Nesse sentido, aprendemos muito pouco com as crises hídricas do passado.

Em artigo anterior, apresentei um dos principais resultados do relatório global das Nações Unidas, lançado em 2020, sobre água e clima, que mostrou que entre 2001 e 2018 aproximadamente 74% de todos os desastres naturais foram relacionados à água. Fator que confirma o que os cientistas do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC) já apontavam, ou seja, que os efeitos das mudanças climáticas com os seus extremos ocorrerão com maior frequência e intensidade de agora em diante. Isso vem acontecendo no Brasil e no mundo. Basta lembrar que, ao mesmo tempo em que boa parte do Brasil atravessa uma forte seca, o estado do Amazonas teve uma cheia histórica. O Arizona, nos Estados Unidos, e a Tailândia também atravessam uma seca severa.

Por aqui, o manejo inadequado e o baixo cumprimento da legislação ambiental, com destaque para a mudança no uso do solo, com desmatamento e outras práticas inadequadas, impactam diretamente a qualidade e a quantidade de água nas bacias hidrográficas. Os reservatórios representam uma parte da área geográfica das suas respectivas bacias hidrográficas. E as bacias vêm sofrendo com a erosão, desmatamento, degradação de nascentes, áreas de recarga de aquíferos, matas ciliares, entre outros fatores. É preciso lembrar que as florestas ajudam a prover diversos serviços ecossistêmicos. Além de evitar erosão e assoreamento dos rios, a floresta ajuda a infiltrar a água no solo, atenuando os picos de vazão na cheia e diminuindo eventos de seca. Também contribui para a formação de um enorme “reservatório invisível”, armazenando água e umidade no solo e recarregando os aquíferos. Não podemos nos dar ao luxo de desconsiderar essa importante fonte de água, incorporando, inclusive, as soluções baseadas na natureza para ampliar a segurança hídrica.

Nessa conta entra também o desmatamento da Amazônia, que afeta, entre outras coisas, um serviço ecossistêmico essencial, os “rios voadores”. Uma árvore de cerca de 20 metros de copa lança algo em torno de mil litros de água por dia na atmosfera pela evapotranspiração. A floresta funciona assim como uma grande “bomba de água” para a atmosfera que, com a influência dos ventos, cria um fluxo aéreo maciço e poderoso na forma de vapor, levando umidade e chuva para outras regiões do país, como o Centro-Oeste e o Sudeste.

Ainda existe a crença de que a água é um recurso inesgotável. De que a engenharia e a tecnologia sempre resolverão os problemas da escassez. De que se “chover e encher” os reservatórios, os riscos hídricos acabam. Infelizmente a realidade tem se mostrado bem diferente.

Esse conjunto de fatores associados a uma visão política de curto prazo, com diretrizes setoriais desintegradas e com investimentos públicos ou privados muito aquém das necessidades, não se traduzirão num cenário de desenvolvimento, segurança hídrica e bem-estar social. Cabe ressaltar que a Política de Recursos Hídricos do Brasil é uma das mais avançadas do mundo, porém precisa que a sua implementação seja acelerada. E é por isso que a MP recém-aprovada, que interfere no caráter regulatório, tem potencial de acentuar o risco hídrico, seja pelo aspecto físico, regulatório, reputacional ou financeiro junto aos demais usuários de água.

A segurança hídrica é um dos maiores desafios desse século. Mais do que nunca, precisamos aplicar a nossa melhor ciência, impulsionados por uma economia regenerativa, com investimentos inteligentes, combate às mudanças climáticas, governança e gestão integrada, para recuperar as bacias hidrográficas para que sejam saudáveis e resilientes. Somente assimmiremos garantir água limpa em qualidade e quantidade para consumo humano, cultivo de alimentos, produção de energia e a sustentação de nosso ambiente natural e cultural.

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