Da sobrevivência à “supervivência”: a solução é a vacinação em massa

Da sobrevivência à “supervivência”: a solução é a vacinação em massa

Profissionais de saúde do todo o Brasil estão sofrendo uma espécie de burnout coletivo. Por trabalhar com muitos pacientes idosos e oncológicos, tenho vivenciado relatos como: “não pude ver e segurar meu único neto por causa da pandemia”, “estou em depressão após perder três membros da minha família para a COVID-19”, “não pude despedir do meu marido nem fazer um velório adequado e ainda carrego a culpa de poder ter sido eu quem passou COVID-19 para ele”. Essas e outras frases infelizmente são rotina em nossos atendimentos e, além disso, comunicamos notícias de óbitos, de agravamentos de quadro e de diagnósticos de COVID para pacientes e seus familiares diariamente.

A cada perda vejo no rosto do meu amigo e colega de trabalho que é infectologista, paliativista e intensivista - habituado a lidar com o sofrimento humano, porém nunca antes dessa magnitude e o pior, sem uma calmaria para respirar - um nítido semblante de exaustão, tentando ser ocultado por um sorriso forçado e uma piada para trazer mais leveza para esses dias tão difíceis. Mas a cada dia que passa, vejo-o mais desanimado e com menos energia.

Certo dia ele chegou ao hospital pela manhã e disse “estou arrasado, tive quatro óbitos esta noite na UTI COVID, dois deles da mesma família e ainda tive que dar essa notícia aos entes queridos estando despedaçado por dentro, por tentar salvá-los intensamente nos últimos dias e ver que todo o esforço da equipe será agora somado a mais um luto pela perda dessas vidas”.

O medo da COVID-19, diagnósticos tardios e a urgência da vacina

Constantemente temos visto pacientes graves chegarem aos hospitais e clínicas com diagnósticos tardios por medo de fazer exames precoces, de ir ao médico ou de sair de casa. Na minha própria família ocorreu isso. 

Meu avô de 91 anos permaneceu por muitos dias escondendo uma dor abdominal, adiando sair de casa para investigar e fazer exames por medo da COVID-19 e ficou mais de 10 dias com dores. Quando ele finalmente foi ao hospital já estava com uma úlcera duodenal perfurada que, felizmente e graças à vesícula que a tamponou e à equipe de saúde que o atendeu com muita competência e cuidado, ele foi salvo e aos 91 anos, suportou uma grande cirurgia e “superviveu”a um quadro que poderia ter sido fatal. Sim, digo “superviveu”e não “sobreviveu”, pois meu avô não é uma pessoa que apenas sobrevive, como costuma dizer a filosofa Lúcia Helena Galvão: “Todos os homens morrem, mas nem todos os homens realmente vivem, alguns só sobrevivem”. 

Infelizmente, muitos não têm mesma sorte do meu avô e chegam ao hospital com múltiplos infartos, derrames, câncer muito avançado, apendicite supurado, cetoacidose diabética* ou outras condições críticas e em uma fase tardia, nas quais o tratamento pode não ser tão eficaz. E assim continuamos perdendo mais vidas, não apenas diretamente pela COVID-19, mas também por danos indiretos da pandemia e pela mistanásia* que assola nosso país. 

Somando tudo isso à calamidade que se encontra o estado do Amazonas que choca o mundo e mais ainda a nós brasileiros, só evidencia que urgimos de uma solução imediata. Rivalidades políticas ou qualquer outra fonte de divergências devem ser deixadas de lado neste momento para que haja união para a única solução: a vacinação em massa.

Nenhuma vacina é 100% eficaz e existe a chance de pessoas se vacinarem e não ficarem protegidas, mas mesmo assim os desprotegidos estariam seguros por não encontrarem quem passe a doença para eles. Uma ampla cobertura geraria, portanto, uma imunidade coletiva.

A dor e o aprendizado de “estar do outro lado” no combate à doença 

Eu, como profissional de saúde, não fui “atingida” pela pandemia somente no trabalho, no atendimento aos pacientes, no desenvolvimento de protocolos, no apoio às equipes, na substituição de colegas que estavam afastados, nas adaptações a novas rotinas, nos boletins e visitas virtuais, mas no meu âmbito familiar. 

Meu pai se contaminou, ficou em estado grave, foi para a UTI e eu tive que lidar com a imensa dor de uma filha ao ver um pai pedir por ar, ao mesmo tempo em que eu também era uma médica que precisava raciocinar rápido para tomar decisões assertivas que pudessem salvá-lo. Sem a imensa ajuda dos meus colegas eu não teria conseguido nem chegar ao próximo dia, tamanho era o meu desespero e dor naquele momento de incerteza sabendo, como profissional, tudo de ruim que poderia acontecer ao meu pai e, ao mesmo tempo, lutando para manter a esperança viva.

Estar do outro lado é um enorme aprendizado e de várias formas. Devido à minha especialidade vivencio ativamente o ato de empatia todos os dias, mas passar por essa experiência de sofrimento nessa intensidade me levou a outro patamar de “me colocar no lugar do outro” e, além disso, de fazer o possível para resignificar aquela experiência. Isso tudo me fez viver a verdadeira compaixão e sentir que realmente estamos todos conectados em um sentido positivo de interdependência. Sim, precisamos muito uns dos outros e se não fosse por cada um que contribuiu para que a recuperação do meu pai fosse possível, o desenrolar da história poderia ter sido muito diferente.

Desde a faxineira da limpeza do leito que o recebeu na UTI; passando pela fisioterapeuta que conseguiu, após muita dificuldade, concretizar uma prona* de um obeso; seguindo pelos meus colegas e amigos que acompanhavam em tempo real os exames e que, ao mesmo tempo, tentavam de tudo para me tranquilizar e me lembrar que eu tinha que comer e beber água para estar inteira ali ao lado do meu pai; até o coordenador da ala, que atendia todas minhas ligações angustiadas e conseguiu auxiliar muito, mesmo estando em intensa dor pela situação do próprio pai que estava gravíssimo em outra UTI e, infelizmente, faleceu por COVID-19.   

Seja a gota que contribui para formar o mar

Santo Agostinho dizia: “Necessitamos um do outro para sermos nós mesmos”. Sim, para sermos nós mesmos é necessário descobrirmos nossa mais pura essência. E o que é o ser humano se não amor e fraternidade? 

Quando unimos nossas essências verdadeiras somos capazes de atingir coisas inimagináveis. Desde curar almas adoecidas, propiciar a recuperação de muitos doentes e até mesmo realizar uma vacinação em massa por todos os meios, em todo o país, e sermos capazes de finalmente conter uma crise dessa magnitude. 

Essa é a minha esperança, que nada tem a ver com o verbo esperar, mas sim com o verbo esperançar, que como cita Mário Sérgio Cortella “É preciso esperançar, olhar e reagir a tudo aquilo que não tem saída”. 

Meu pai após ter sobrevivido a essa infecção grave por COVID-19, está desde então fazendo tudo que é possível para também “superviver”e auxiliar dentro de sua expertise para que estejamos mais próximos dessa realidade de alcançar a vacinação em massa no Brasil. Juntamente com meu irmão e várias outras pessoas da área de relações internacionais, estão buscando acordos com outros países para que tenhamos quantidade suficiente da vacina. 

Não importa qual país, qual vacina, qual instituto será parceiro. Se as vacinas passaram por todos os testes adequados e por todas as fases para serem aprovadas para uso emergencial pelo comitê técnico da ANVISA, elas são seguras para serem aplicadas na população. É o que importa. Como meu irmão e meu pai trabalham com a relação Brasil-Índia, essa foi a forma que encontraram para se transformarem também em agentes e não apenas expectadores dessa batalha.

Não apenas os diplomatas, profissionais de saúde, governantes, cientistas e pesquisadores podem de fato agir e contribuir nesse momento. Mas você quando fica em casa e não é responsável por disseminar o vírus, que usa máscaras, que se opõe às aglomerações, que conscientiza o próximo da importância de se proteger, de respeitar o isolamento, de vacinar, também é um grande agente dessa solução.

 “Às vezes sentimos que o que fazemos é apenas uma gota no mar, mas o mar seria menos se lhe faltasse uma gota” disse Madre Teresa de Calcutá. Portanto, se todos nós agirmos cada qual com sua gota, faremos juntos um mar. Um mar de solidariedade, de fraternidade e de união. Valores esses que são os protagonistas e heróis para que nossa humanidade sobreviva à pandemia e “superviva”no pós-pandemia.

Por Sarah Ananda Gomes – Médica paliativista

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*Prona: a técnica chamada de pronação, em que o paciente fica em “posição de bruços” melhora a função dos pulmões e oxigenação dos pacientes com insuficiência respiratória. A pronação é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para pacientes graves da Covid-19.

*Mistanásia: quando um indivíduo vulnerável socialmente é acometido de uma morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação de seu direito a saúde.

*Cetoacidose diabética: A cetoacidose diabética é uma complicação aguda e grave de paciente com Diabetes Mellitus (DM).

Muito bom! Força e solidariedade pra todos nós.

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José Luiz Paoli Vieira

Médico na Governo do Estado de São Paulo

3y

Lindo texto! Preciso e comovente este seu relato... Temos que buscar a empatia sempre e em todo lugar!  Parabéns! 

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Gustavo Jacob

MD MSc FACS BSSO | Surgical Oncologist | Full stack developer embracing Python and AI

3y

Sensacional Sarah !

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